Agentes tentam encontrar saída para comercializador varejista
Maurício Corrêa, de Brasília —
A figura do comercializador varejista, lançada pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) em conjunto com o mercado, há quatro anos, tem sido um fracasso total. Mas, depois de um seminário realizado nesta quarta-feira, 21 de junho, na sede da Aneel, surgiram algumas indicações no sentido que o quadro pode mudar.
O evento foi organizado pela associação dos comercializadores, a Abraceel, que lançou a ideia na praça, há cerca de oito anos. O assunto foi ponderado durante algum tempo, até que a CCEE resolveu encarar e aceitar a proposta de criação do comercializador varejista.
Entretanto, como revelou o presidente do Conselho de Administração da Câmara, Rui Altieri, apenas seis empresas estão habilitadas, quatro encontram-se em processo de adesão e os contratos representam somente 6,7 MW médios. “Não é nada”, disse, com franqueza, o dirigente da CCEE.
Todo mundo reconhece que a figura do comercializador varejista pode ser importante para o mercado de energia elétrica, principalmente para desafogar as atividades da CCEE. O que pega, entretanto, é o fato de a regulação jogar para o varejista o risco de eventuais inadimplências nos contratos por ele assinados. Ninguém quer ficar com o mico na mão.
Altieri deixou claro que, sem o varejista, a CCEE vai travar. Afinal, estão vinculados à Câmara, hoje, 6.381 agentes e 34.534 contratos e o número só aumenta. No ano passado, foram contabilizados R$ 25,8 bilhões e, só neste ano, os valores contabilizados já atingem R$ 10,8 bilhões. No ano passado, as adesões ao mercado livre tiveram a média de 192 novos agentes por mês. Neste ano, a média caiu um pouco (passou para 153), mesmo assim continua alta.
Existem 201 agentes de comercialização registrados na CCEE, 863 consumidores livres e 3.910 consumidores especiais, que transformam o dia a dia da Câmara numa espécie de frenética atividade de enxugar gelo: a CCEE vem se aparelhando para atender às demandas, mas elas crescem numa velocidade muito maior do que a Câmara pode atender.
Júlio César Rezende Ferraz, superintendente de Regulação Econômica e Estudos do Mercado da Aneel, reconheceu que “é preciso entender melhor o problema e encontrar uma solução. Há pouca efetividade na regra, do jeito que ela está posta”. A Resolução 570, que normatiza a figura do comercializador varejista, modela sob si os ativos de geração e de carga no âmbito da CCEE. As eventuais inadimplências bilaterais entre os varejistas e seus representados têm impactos nas empresas, mas não repercutem no mercado de curto prazo.
Na sua visão, a questão é complexa, pois os poderes Judiciário e Legislativo têm visões diferentes do mercado e da CCEE em relação ao desligamento de agentes inadimplentes. “Em diversas situações, o Judiciário e o Legislativo discordam que se deva desligar o consumidor inadimplente. Assim, o risco associado aos inadimplentes que continuam ligados é real”, afirmou, perguntando se “não haveria uma outra forma mais razoável para alocar esse risco?” Para o superintendente, é fundamental identificar para onde vai o risco do negócio, para que a figura do varejista possa deslanchar.
Confirmando o que disse o técnico da Aneel, Rui Altieri explicou que está desde 2015 na CCEE e foi testemunha de apenas quatro desligamentos. “Esse é um problema da nossa cultura que precisa ser equacionado. O consumidor que vai ser desligado sempre aparece na CCEE acompanhado de alguém que tem mandato”, ou seja, um político. Na sua visão, resolver esse problema é fundamental para equacionar o futuro de todo o mercado livre de energia elétrica.
A CCEE, conforme explicou, defende a abertura do mercado e, nesse contexto, o ideal é que o consumidor faça a migração dentro de um contrato com um varejista, como, aliás, era no início das operações do mercado livre no Brasil. “Precisamos rever o modelo atual de negócio, no qual a distribuição terá um novo papel”.
Um dos pioneiros do mercado livre, Luís Gameiro, da comercializadora Tradener — que não fez opção para ser varejista — entende que qualquer solução precisa passar pela mitigação do risco. “O comercializador não quer ficar com esse risco, pelo simples fato de que não pode repassá-lo”.
Outro pioneiro do mercado livre, Ary Pinto Ribeiro Filho, hoje é conselheiro da CCEE, também lembrou que, no início do ML, os consumidores não eram conectados diretamente à CCEE e, sim, aos comercializadores. “Eu não compro ações diretamente na bolsa. Preciso de uma corretora. Da mesma forma, não compro uma geladeira no fabricante. Tenho que ir numa loja”, comparou.
Do evento, participaram dois especialistas estrangeiros: Eduardo Teixeira, chefe da Divisão de Mercados e Consumidores da Erse (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos), de Portugal; e Cecília Maya, diretora da XM, uma entidade colombiana que faz ao mesmo tempo a liquidação dos contratos e a operação do sistema elétrico do País, reunindo as atividades que, no Brasil, são desempenhadas separadamente pela CCEE e pelo ONS.
As duas experiências — principalmente a portuguesa — deixaram muitos dos participantes do evento com inveja e água na boca, pois tanto a Colômbia quanto Portugal conseguiram resolver problemas que o Brasil têm muita dificuldade para gerenciar, seja pela inércia da burocracia do sistema elétrico, seja pela ação oportunista dos políticos ou pela incompreensão do Poder Judiciário.
Em Portugal, por exemplo, a elegibilidade é total, ou seja, todos os consumidores têm a opção de escolher livremente os supridores da energia elétrica e gás, embora nem todos o façam por considerar muito complexo o processo de migração do ambiente regulado para o ambiente livre. A Erse sé uma agência reguladora que consistiria numa mistura de Aneel e ANP. O próprio consumidor é que determina quando quer mudar de fornecedor. Atualmente, a mudança é concretizada em apenas cinco dias e a meta da Erse, até 2020, é fazer com que a troca demore no máximo 24 horas.
No Brasil, a Abraceel batalha há tempos, dentro do Congresso, para tentar avançar no projeto de portabilidade dos consumidores de energia, numa transição que se completaria em 2023, mas sempre esbarra no conservadorismo do resto do setor elétrico, que não aceita a inovação, e se alia, no meio político, aos que também resistem às mudanças.
É verdade que o mercado português é bastante pequeno, de apenas 7 milhões de unidades consumidoras, quase 11 vezes menos do que o que se verifica no Brasil. Mas, lá, já se conseguiu institucionalizar a figura do comercializador de última instância e o papel do distribuidor limita-se rigorosamente a entregar a energia através do seus fios.
Cecília Maya mostrou que o mercado varejista na Colômbia surgiu há 22 anos e que o país conta com um sistema hidrotérmico que guarda semelhanças com o Brasil. Lá, 2/3 da energia são gerados por hidreletricidade e o restante por térmicas a gás ou carvão. A energia eólica inexiste no País, pois os ventos são de baixa intensidade e não justificam os investimentos.
Na Colômbia, os consumidores livres só podem atuar através de comercializadores, cuja constituição é bastante facilitada. Não se requer capital mínimo para abrir uma empresa de comercialização de energia, embora para operar sejam exigidas as devidas garantias, na forma de patrimônio ou cobertura financeira. O mercado livre colombiano tem uma fatia de 30% do mercado total, o que é muito parecido com o Brasil.
O “X” da questão que trava o sucesso do comercializador varejista no Brasil não existe em Portugal, onde os inadimplentes recebem um pré-aviso de 20 dias. Se nesse período quitar a dívida ou assinar um acordo de parcelamento, continua a receber a energia normalmente. Se não se mexer, será fatalmente desligado.
Na Colômbia, entretanto, como no Brasil, existem dificuldades para se desligar o cliente inadimplente, devido a uma jurisprudência da Corte Constitucional (equivalente ao Supremo Tribunal Federal brasileiro), que cria muitos obstáculos para o corte da energia, tornando a tarefa quase que impossível.
Entre os participantes, ficou a sensação que o Brasil, embora seja possuidor de um sistema elétrico de qualidade muito alta, respeitado internacionalmente, em termos de comercialização de energia ainda está na idade da pedra e precisa avançar muito para não ficar para trás, pois, afinal o prejuízo é da sociedade como um todo, que sai perdendo no quesito competitividade.
Reginaldo Medeiros, presidente da Abraceel, tem esperança que a Consulta Pública 21, aberta pelo Ministério de Minas e Energia, caminha claramente na direção de uma abertura maior do mercado, o que deverá agregar maior número de consumidores ao mercado livre. “Temos clareza que não é possível conviver com mais consumidores como agentes ligados diretamente à CCEE. Por isso, há uma enorme expectativa para mapear os caminhos através deste encontro”, argumentou.