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Projeto Memória da Eletricidade: preservação da história do SEB

Memória da Eletricidade/Nacional – Entre o que a memória guarda e o que o tempo desfaz, existe um intervalo feito de lacunas, rastros e intenções que desafia os pesquisadores e encanta os que se dedicam à preservação das experiências humanas Compreender esse intervalo é essencial para quem trabalha com arquivos pessoais, pois é nele que a vida se mistura à história, revelando o quanto os documentos podem ultrapassar seu caráter técnico e se transformar em testemunhos de trajetórias, afetos e escolhas.

No Brasil, o interesse pela preservação da memória ganhou força a partir da década de 1980, quando ocorre um notório crescimento dos centros de memória no país. Esse movimento esteve diretamente ligado à conjuntura política e social daquele momento, em meio ao processo de redemocratização e sob a emergência de ações visando à preservação da cultura e da identidade das organizações. O Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, ou apenas Memória da Eletricidade, surge nesse contexto. Instituída em 1986 por iniciativa da Eletrobras e de outras empresas do setor, é uma entidade cultural sem fins econômicos cujo objetivo é resguardar e disseminar a história da energia elétrica no Brasil.

Quase quarenta anos depois, o que começou como um projeto pioneiro transformou-se em um acervo vasto e plural. O acervo da instituição se consolidou como um dos mais abrangentes da área e o que mais chama atenção é que mais da metade desse patrimônio é formado por arquivos pessoais, produzidos e acumulados por engenheiros e personalidades do setor ao longo de suas trajetórias.

São documentos que atravessam mais de um século. Registram a constituição de grandes empresas, a expansão de empreendimentos hidrelétricos, termoelétricos e nucleares, mas também guardam marcas dos impactos políticos e sociais desse avanço tecnológico Entre papéis de trabalho, fotos de família, lembranças de comemorações e memórias cotidianas esses acervos preservam não só a trajetória do setor elétrico, mas sobretudo histórias de vida. E é justamente aí que revelam sua riqueza: quando mostram a dimensão humana que pulsa por trás das grandes obras de engenharia.

Imagem 1 Lucas Lopes (à direita), à margem da Cachoeira Dourada | Acervo Memória da Eletricidade
Imagem 1 Lucas Lopes (à direita), à margem da Cachoeira Dourada | Acervo Memória da Eletricidade

O do engenheiro Lucas Lopes é um exemplo emblemático. Além dos documentos ligados à sua vida pública, sobretudo sua passagem pelo Ministério da Fazenda no governo Juscelino Kubitschek, o acervo guarda lembranças íntimas: um clipping produzido por seu pai, papéis de sua esposa, Esther Pádua, e fotografias tiradas no período em que foram realizados estudos para a construção de Brasília. Algumas dessas imagens trazem, no verso, elogios enigmáticos, que poderiam ser dirigidos ao engenheiro ou talvez à paisagem que o rodeava.

O maior acervo pessoal sob guarda da instituição é o do engenheiro John Cotrim. Composto em grande parte por documentos administrativos e técnicos, alguns altamente sigilosos à época, ele foi doado em três momentos: pelo próprio titular, por um familiar e por um grande amigo. Entre os papéis, está um conjunto precioso ligado ao planejamento e à construção da usina de Itaipu, incluindo registros das negociações diplomáticas entre Brasil e Paraguai. Somam-se a esse núcleo as cartas que Cotrim trocou e acumulou com engenheiros que expressavam tanto apoio quanto críticas à obra. Esse diálogo registrado evidencia a dimensão pessoal do acervo, pois mostra como as relações, tensões e opiniões individuais se entrelaçam à memória de um dos maiores empreendimentos do setor elétrico brasileiro.

Imagem 2 John Cotrim e estudos de energia | Acervo Memória da Eletricidade
Imagem 2 John Cotrim e estudos de energia | Acervo Memória da Eletricidade

Outro arquivo de destaque é o do engenheiro Mauro Thibau, cuja vida foi narrada em livro publicado pela Memória da Eletricidade em 1997. Doado em 1992, o conjunto reúne mais de 300 documentos textuais e 350 fotografias, com ênfase em sua atuação à frente do Ministério de Minas e Energia entre 1964 e 1967. A correspondência preservada traz diálogos com figuras centrais do setor elétrico, como Octávio Marcondes Ferraz e Benedito Dutra, e também com personagens do cenário político, entre eles, Castello Branco, Israel Pinheiro, Magalhães Pinto e Eugênio Gudin. Entre os registros mais emblemáticos está a fotografia em que Thibau aparece ao lado do povo indígena ianomâmi. À primeira vista, a cena poderia ser interpretada como um estudo geográfico para aproveitamento hidrelétrico, mas, na realidade, o engenheiro investigava uma denúncia feita pelos próprios ianomâmis sobre extração ilegal de minérios por estrangeiros.

Imagem 3 Mauro Thibau e indígenas Ianomâmis | Acervo Memória da Eletricidade
Imagem 3 Mauro Thibau e indígenas Ianomâmis | Acervo Memória da Eletricidade

A diversidade dos acervos pessoais revela outro aspecto: a subjetividade que permeia a produção e o acúmulo desses documentos. Muitas vezes, o que não está registrado é tão revelador quanto o que foi documentado. O silêncio de um arquivo também fala. Ele pode indicar escolhas conscientes do titular sobre o que preservar e o que descartar, mas também pode refletir esquecimentos, apagamentos ou simplesmente o acaso.

Essas ausências desafiam os pesquisadores. Ao mesmo tempo em que oferecem lacunas, também instigam novas perguntas: por que certos episódios não foram registrados? Que versões da história emergem justamente daquilo que não foi contado?

Quando se trata de arquivos pessoais esses vazios se entrelaçam aos registros existentes, compondo narrativas fragmentadas, mas profundamente humanas. Afinal, a vida não se deixa aprisionar por completo em papéis, imagens ou objetos. O que falta no arquivo é, muitas vezes, tão expressivo quanto o que nele permanece.

E entendendo essa multiplicidade de possibilidades e sentidos, o olhar da Memória da Eletricidade para esses conjuntos documentais parte de uma premissa fundamental: os registros pessoais não se limitam à vida profissional. Eles devem abarcar também relações familiares e sociais, pois são esses fragmentos que ajudam a compreender a complexidade humana por trás da figura pública. Cada arquivo pessoal oferece uma visão singular da experiência cotidiana. Mesmo nos documentos mais formais, quase sempre há um traço particular, uma intenção única, uma memória que escapa a qualquer regra. E é justamente nessa unicidade, nessa mistura de vida íntima e história coletiva, que reside a beleza desses acervos, tão múltiplos quanto indispensáveis para a compreensão da memória do setor elétrico brasileiro.

Sobre a Memória da Eletricidade

A Memória da Eletricidade é uma instituição sem fins lucrativos dedicada à preservação e difusão da história do setor elétrico brasileiro. Desde 1986, realiza projetos de pesquisa histórica, conservação de acervos, produção de publicações e coleta de relatos de história oral, promovendo o conhecimento sobre a trajetória e os desafios da energia no Brasil. Seu acervo reúne milhares de documentos, fotografias, vídeos e registros sonoros que contam a evolução do setor elétrico e podem ser acessados gratuitamente pelo site

www.memoriadaeletricidade.com.br.

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