Governo acaba com autonomia da CCEE
Maurício Corrêa, de Brasília —
Jornalistas e lobistas que vivem em Brasília já sabem, há muitos anos, que é nesta época do ano, próximo ao Natal e Ano Novo, que mora o perigo. Por experiência, sabem que este é o momento ideal, sob o ponto de vista do Governo, para abrir o saco das maldades e mandar ver.
Nestes dias, os diversos segmentos da sociedade estão desativados, todo mundo está cansado e só pensando nas ceias do Natal e do Ano Novo. Neste ano, não podia ser diferente.
Faltando apenas 10 dias para a mudança no calendário, o Governo surpreendeu e publicou um decreto que aumenta a intervenção federal na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e enterra de vez todas as esperanças de ver a Câmara voltada para aquilo que foi um dia constituída, que era unicamente para fazer a gestão de contratos na área de energia elétrica.
Fontes do mercado procuradas por este site não quiseram bater de frente com o Governo e preferiram comentários em “off the records”. Mas a repulsa foi generalizada. Até porque há poucos dias o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, já havia rasgado o contrato de concessão da distribuidora Equatorial Amapá com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), anunciando uma Medida Provisória da Justiça Tributária, que não passa de uma forma de tungar a Equatorial no reajuste a que, contratualmente, a empresa tinha direito.
O populismo e a demagogia falaram mais alto no episódio do Amapá. Mas, no caso da CCEE, o que o mercado diz é que tudo não passa de uma antiga alucinação petista de controlar os mercados em geral. “O PT nunca engoliu o mercado livre de energia elétrica. Controlar a CCEE é uma forma de dizer ao mercado que quem manda é o Partido, mesmo que através de alguém, como o ministro atual, que não é do PT”, comentou um especialista.
Até que Alexandre Silveira vinha relativamente bem, desde o dia 15 de agosto, quando após um apagão, querendo agradar as lideranças do partido majoritário da coalizão, saiu-se com a brilhante ideia que o apagão tinha sido uma consequência da privatização da Eletrobras. Desmentido, depois, pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Silveira mergulhou e veio se recuperando aos poucos, até pisar de novo na bola na história do Amapá.
Agora, o mercado aparentemente perdeu a paciência com o ministro de Minas e Energia. Ele provavelmente continuará no cargo, pois é do interesse do Palácio do Planalto. Entretanto, depois dessa da CCEE a imagem do ministro foi pro brejo. Difícil se recuperar.
“Silveira é parecido com Marcio Zimmermann (que foi secretário-executivo do MME e se transformou numa figura odiada pelo mercado, pela submissão total aos interesses do Planalto). A única diferença é que o atual ministro em alguns momentos teve um discurso pró-mercado e agora vê-se que não era nada disso”, argumentou uma fonte. “Uma decepção”, emendou.
O Decreto 11.835/2023 muda a história da CCEE e praticamente transforma a Câmara numa espécie de estatal, atribuindo-lhe também a missão de elaborar estudos relacionados com o mercado. Torna-se, assim, uma concorrente de outro órgão do Governo, a EPE, que existe para isso. A CCEE também poderá prestar serviços de tecnologia e educacionais.
Um especialista do mercado lembrou ao site “Paranoá Energia” que a CCEE já está se envolvendo até com o desenvolvimento do hidrogênio, o que está muito distante da finalidade original.
Do ponto de vista das suas operações, o decreto criou uma nova categoria dentro da CCEE exclusiva para consumidores que adquirem energia no mercado livre. Os consumidores com carga inferior à 500 KW deverão ser obrigatoriamente representados por um comercializador varejista.
Um dos pontos que causam maior polêmica no mercado é que para bancar essa nova CCEE, será preciso muito dinheiro. O decreto diz que as contribuições associativas passam a ser compostas por uma parcela fixa, destinada a cobrir os custos dos serviços mínimos da CCEE paga por todos os agentes; e por uma parcela variável, destinada a cobrir os demais custos da CCEE, em valor proporcional ao volume de energia contabilizada na Câmara nos últimos 12 meses. As empresas fatalmente aumentarão os desembolsos em favor da CCEE, o que não é boa notícia para ninguém.
Além disso, a CCEE passa a cobrar via emolumentos a emissão de certificados de energia e até mesmo a prestar serviços relativos a regras e procedimentos de energia, quando destinados a necessidades específicas de um grupo de agentes.
O decreto muda a estrutura organizacional da CCEE. “Foi um presentaço para a Câmara”, definiu um técnico da área de energia elétrica, enquanto outros concordaram que está aberto o momento de arranjar empregos para os amigos do Rei.
O Conselho de Administração agora será composto por oito membros e oito suplentes (atualmente são apenas cinco membros), com mandato de dois anos (atualmente são quatro anos), sendo permitidas duas reconduções (atualmente se permite somente uma recondução).
O presidente do Conselho de Administração continuará sendo indicado pelo MME, o qual passa a ter voto de qualidade nos casos de empate nas deliberações. Cada categoria do SEB (geração, distribuição, comercialização e consumo) continua indicando um integrante do Conselho.
Mas os três novos membros serão indicados pelo MME. Ou seja, a partir de agora não há mais qualquer risco de o Governo perder alguma disputa dentro da CCEE. Acabou a autonomia do mercado e o Governo estende a mão peluda em definitivo sobre a Câmara.
Está sendo criada uma Diretoria para CCEE, que terá função deliberativa para o exercício de gestão. Serão até seis diretores, com mandato de dois anos, sem limite de recondução, sendo o diretor-presidente indicado pelo MME, como o presidente do Conselho de Administração.
Como se todo esse Poder que o decreto dá ao Governo não fosse suficiente, ainda resta uma chance de aumentar mais o filme de horror em que a CCEE foi mergulhada, pois o seu estatuto social poderá ser aperfeiçoado pelo Governo, para acertar eventuais pendências e não deixar brechas.
O novo papel da CCEE se parece tanto com antigas estatais do Governo Geisel que se fala até mesmo na abertura de um escritório da Câmara em Brasília.
No mercado, tem gente que se mostra revoltada com o decreto porque ele praticamente institucionaliza a docilidade dos agentes e dirigentes da CCEE em relação ao protagonismo do Governo no controle dos mercados, inclusive de energia elétrica.
“Não se trata apenas de ganhar ou perder dinheiro, pois essa é uma circunstância do mercado que todos os agentes compreendem. É uma questão de filosofia de gestão. Estamos a poucos dias de enormes transformações no mercado e o Governo vem com esse decreto, que é uma enorme intervenção na CCEE. Se o Governo pode fazer isso, pode fazer qualquer coisa. Alguém acredita 100% em abertura de mercado, no Brasil, com uma postura dessa? Tudo pode acontecer”.
Na visão de um ainda perplexo especialista do setor elétrico, o decreto vem em um momento, às vésperas do Natal, no meio de um contexto de acelerada abertura de mercado e da necessidade de adoção de medidas que elevem a segurança do mercado de comercialização de energia elétrica e não o contrário. “O Brasil, às vezes, cansa”, finalizou.