Relações estremecidas entre CCEE e Abraceel
Maurício Corrêa, de Brasília —
A relação entre a Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel) e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que já era ruim, ficou pior ainda. No final de novembro, o presidente da associação, Rodrigo Ferreira, assinou um duro artigo no site “Canal Energia”, enfiando o pé no acelerador contra a Câmara. Esta revidou com uma carta à Abraceel, com cópia para todas as autoridades do setor elétrico brasileiro, puxando as orelhas dos comercializadores. Não foi uma carta agressiva, ao contrário, foi diplomática, mas mostra que o bicho tá pegando entre as duas organizações. O documento foi assinado por Rui Altieri, presidente do Conselho de Administração da Câmara.
Divergências são normais entre a área empresarial e setores do Governo ou vinculadas ao Governo, como a CCEE. Ao longo de 20 anos, a Abraceel e a CCEE (mesmo nos tempos do antigo MAE) tiveram inúmeros desencontros. Houve casos de judicialização, mas as diferenças foram quase sempre resolvidas na base da conversa e do entendimento. Agora, entretanto, a situação azedou.
“A CCEE ao longo deste ano tomou diversas atitudes que nos surpreenderam, na medida em que causam impactos financeiros aos associados. Foi uma decisão equivocada atrás da outra, sem a mínima preocupação de diálogo com a Abraceel”, reclamou uma fonte credenciada da associação, confirmando a existência da carta.
A mesma fonte reconhece que o artigo no “Canal Energia” é de fato “duro”, mas merecido, pois a CCEE, com uma decisão sobre o GSF, estaria impondo custos da ordem de R$ 300 milhões aos comercializadores, de uma forma autoritária, sem discutir com o segmento.
A CCEE propôs para a Aneel a alteração das regras do Mercado de Curto Prazo (MCP) para imputar a todos os agentes, na proporção dos votos, o valor de quase R$ 1 bilhão referente a débitos não pagos por 80 meses e suspensos por decisões judiciais do risco hidrológico (GSF). Como os comercializadores constituem cerca de 1/3 dos associados da CCEE, receberiam então uma conta a pagar próxima de R$ 300 milhões.
“O Rui Altieri saiu da Aneel e foi para a CCEE e continua achando que ainda trabalha na Aneel. Ele não consegue compreender que o seu papel na Câmara é diferente. Ele não é mais um regulador”, reclamou a mesma fonte.
Entre os comercializadores, além da questão do GSF, pesa contra a CCEE o fato de, na última assembleia, ter aprovado a cobrança de emolumentos apenas contra os comercializadores, que são um dos tipos de associados da Câmara. Há outra categorias dentro da CCEE. “Qualquer cobrança precisa ser isonômica. Não podem ocorrer cobranças discriminatórias desse tipo, pois elas revelam uma espécie de perseguição aos comercializadores. A CCEE errou feio”, complementou a fonte.
O fato é que, do ponto de vista da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica também existe um enorme ressentimento contra a Abraceel, pelo fato de, em um recente relatório aos associados (divulgado com exclusividade por este site, em 18 de novembro), a Abraceel ter acusado a CCEE de “tungar” os comercializadores com essa conta de R$ 300 milhões do GSF.
Como se sabe, o verbo “tungar” é muito forte e normalmente utilizado em linguagem de malandros ou mesmo em conversas de botequim sobre futebol. “O juiz tungou o meu time”, ou seja, o juiz roubou a favor do outro. “O trombadinha tungou um idoso na calçada”, ou seja, meteram a mão no bolso de alguém. Em vários dicionários, “tungar” tem o significado de furtar, roubar e este editor confessa que nunca o viu em comunicação oficial do setor elétrico. Essa história revoltou a CCEE, que ficou surpresa e muito magoada com o fato. Este site apurou que, internamente, a Abraceel reconheceu que a aplicação do verbo foi indevida, mas aí o caldo já havia entornado.
Em seu artigo no “Canal Energia”, Rodrigo Ferreira não economizou palavras e partiu para cima da CCEE. destacando que a Câmara “é uma empresa privada sustentada pelos agentes que a compõem e, convenhamos, não custa barato ao mercado sua manutenção”, argumentou Ferreira. Também escreveu que a governança da CCEE é inadequada e sem transparência, que os integrantes da diretoria executiva não são escolhidos exclusivamente por critérios técnicos, que as propostas da gestão não são bem fundamentadas, que a atuação dos diretores da CCEE não está relacionada com metas eventualmente atingidas.
“A CCEE, para alcançar sua meta, necessita de um Conselho de Administração profissional, indicado pelos segmentos de mercado que suportam suas operações, e formado por profissionais com notório saber em suas áreas de competência”, assinalou Rodrigo Ferreira ao “Canal Energia”. Embora assinado pelo presidente-executivo da Abraceel, este site apurou que, por total consenso, o artigo reflete também a opinião dos comercializadores, que discordam criticamente da forma de atuar da CCEE.
Ferreira acrescentou na sua crítica dura à CCEE: “A grande mudança seria na diretoria, que precisa ser escolhida a dedo e por empresas especializadas em encontrar os melhores profissionais para cada área e com remuneração e estímulos adequados para uma empresa privada que busca ser referência mundial. Uma diretoria que não tenha a visão temporal de um mandato, mas a certeza de permanência ou saída em função da sua performance, constantemente avaliada pelo Conselho de Administração. Além disso, aos questionamentos já colocados sobre a governança da CCEE, é preciso colocar mais um, fundamental: a gestão da Câmara está alinhada com os interesses e demandas de suas empresas associadas? Atualmente parece que não”.
O site apurou que a resposta da CCEE ao artigo assinado pelo presidente da Abraceel foi no nível diplomático, mas que o recado está todo lá numa carta amplamente distribuída entre as autoridades do setor elétrico, inclusive o ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida.
Nessa carta, a CCEE teria classificado o artigo como “lamentável”. A Câmara lembrou que nunca se negou a discutir qualquer tipo de assunto com os associados ou associações representativas, mas que não gostou da forma como a Abraceel fez, levando as divergências para a mídia. Inclusive, a CCEE teria argumentado na tal carta que as conversas pessoais, tipo “olho no olho” são mais produtivas e responsáveis.
Em sua carta, a CCEE teria mencionado que achou muito estranho o procedimento da Abraceel, até porque sempre teria existido uma relação de respeito com a associação dos comercializadores, que, agora, teria ultrapassado uma espécie de linha vermelha.
Há poucas perspectivas de os dois lados acertarem os passos no curto prazo. Até porque o que se ouve hoje, dentro da Abraceel, é que a CCEE “é uma espécie de monstrinho criado pelo setor elétrico, que acha que tem vida própria”. Além disso, segundo uma fonte, “não há boa convivência da CCEE com ninguém. Pelo menos, não conheço”.
Nesse relacionamento difícil e sem perspectivas, uma fonte ligada à Abraceel sintetizou, considerando que há uma contagem regressiva em relação ao atual presidente do Conselho de Administração da CCEE: “O Rui Altieri deixará o cargo no dia 30 de abril de 2023. Ele não terá mais tempo para consertar o estrago”. “Em 2023, poderemos ter mudanças importantes no mercado, do ponto de vista da legislação, e é incrível que a CCEE esteja brigando com os agentes do mercado em um momento que deveria estar trabalhando para unir o segmento”, reclamou um comercializador influente dentro da associação.
Ou seja, A Abraceel desistiu de Rui Altieri e, dentro da associação, estão abertas as iniciativas para encontrar um substituto para Altieri, quando terminar o seu mandato. É fundamental, para os comercializadores, que o sucessor de Altieri tenha não só competência técnica e compreenda com clareza o papel institucional da CCEE, como também seja capaz de pacificar as relações entre o mercado e a Câmara de Comercialização. Já existem nomes sendo discutidos internamente, de maneira informal.